sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Todos os Caminhos de Clara Pinto Correia, 4Estações Editora.

                                Todos os Caminhos de Clara Pinto Correia. Uma edição 4Estações
                                                                     Divulgação




                                                                                Os pássaros
Já acordei.
         Cheguei ontem à noite ao lado de lá da minha viagem,
e hoje abri os olhos sem amarras nem velas.
         Está feito.
Já me bateu aquela sensação desagradável de nem
sequer perceber o que é isto, onde é que estou, o que é que
se passa a seguir. Já me senti estarrecida, e depois já deixei
de preferir ficar enfiada na cama. Já aceitei a realidade.
Já desliguei o despertador. Até já fui buscar os cereais com
o mínimo de açúcar possível que comprei ontem à noite
no Aldi gigantesco que fica à beira da estrada 99, e já engoli
em seco porque mesmo assim isto é imenso açúcar para os
meus hábitos. E já sei que daqui para a frente vai ser sempre
assim. E pronto. Já não faço mais fitas.
          Perante a estranha forma de vida que me espera agora,
enfio apenas na tijela mais uma colher de iogurte natural. E, muito naturalmente, aceito estar pronta.
         Olho à minha volta através das janelas enormes do estábulo
onde no tempo do Kerouac vivia uma mula chamada
Alf, reconheço o bosque, revejo os caminhos de terra que
rumam à catedral das sequoias milenárias para lá da encosta,
e já percebi que é mesmo hoje. É a partir de agora que estou
outra vez completamente sozinha, e eu sei como é que isto
nos abana porque isto já me aconteceu antes.
            Atravessei o mar, e depois um continente inteiro.
            O oceano que se despenha contra as rochas lá muito ao
fundo do céu passou a ser o Pacífico.
           Na minha primeira noite em Monterey, a Hopkins Marine
Station ofereceu -me o privilégio de dormir no Centro de Estudos
do Big Sur. Reencontrei o nevoeiro e a verdura silenciosa,
respirei outra vez o fundo de sal do mar que chega até aqui,
recomecei a sorrir porque não tenho outro remédio. E também
porque isto pode ter ficado a doer, mas, bem vistas as coisas,
tive imensa sorte e acabei por aterrar num sítio lindo.
O Jack Kerouac também passou o seu verão de beatnik cheio de terrores e de copos noturnos numa casinha de madeira algures pela orla desta mesma floresta. O John Steinbeck veio cá uma vez e depois nunca mais conseguiu deixar de cá voltar. O Henry Miller andou por aqui à procura de Verdadeiras
Comunidades de Artistas, e foi enquanto cá esteve que aprendeu a ser Pai. Antes de partir, reli o Cannery Row do Steinbeck, depois o The Oranges of Hieronymus Bosch do Miller, depois o Big Sur do Kerouac. Assim mesmo, por ordem cronológica do Grande Mestre que vai inspirando o Grande Discípulo. Livros fabulosos que eu já conhecia de pequenina. Um grande romantismo, muito selvagem, exatamente como eu gosto. Mas nada disto é a minha vida.
             Eu sei que isto não é a minha vida.
             Isto não é a minha cultura.
             Claro que isto não é o meu País.
             Ainda agora aqui cheguei e já tenho saudades de estar no
Maria da Fonte e fechar os olhos para cantar outra vez uns bons fados vadios ao lado da guitarra do António. Mas agora já não posso voltar para a boémia da Rua de São Miguel. É mesmo verdade. Voltei a emigrar. Fiz tudo o que podia para conseguir ficar em Alfama, mas até Alfama já pertencia cada vez mais aos estrangeiros e menos a nós. Fomos sufocados por malas de rodinhas sempre a passar na calçada durante a noite, e por grupos densos com alguém de altifalante à frente a debitar pormenores medievais da nossa História em montes de línguas diferentes. Até depois da meia -noite apareciam as pessoas com mapas na mão a perguntar como é que se chegava aos fados ou ao castelo, e no fundo disto tudo rolavam tuk -tuks, tuk -tuks, tuk -tuks, os senhorios punham os inquilinos na rua para venderem as casas aos escandinavos em time -sharing, já andava tudo a saque.  Ou estávamos ali para os servir ou não estávamos ali a fazer nada, e eu como não estava a conseguir fazer nada enchi -me de coragem e tive sorte. Apesar de já ser velha ainda consegui ir embora mais uma vez.
E eu sei o que isto é.





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