quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

A Deriva dos Oceanos de Clara Pinto Correia.


A Deriva dos Oceanos

Clara Pinto Correia
©2017VitorDuarte

Paradigmas

         A certa altura sentou-se ao meu lado no autocarro uma rapariga encorpada, mal-encarada, e enfim, assaz brega. Trazia os auriculares enfiados nas orelhas, e, como acontece com estranha frequência nos transportes públicos, vinha a falar para o alta-voz num tom bastante acima de audível– como se estivesse de facto convicta de que a sua vida, as suas opiniões, os seus problemas, ou as suas decisões, fossem francamente interessantes para todo pessoal circundante. E, por maioria de razões, para a pessoa do lado. Neste caso concreto a pessoa do lado era eu, e ela sentou-se quase em cima de mim sempre a falar aguerridamente com alguém, comportando-se sem qualquer hesitação como se eu quisesse e tivesse de saber do seu assunto de conversa.
         “Já dei com pés no gajo”, dizia ela, valente e estridente. “Dei-lhe logo ali com os pés pelo telefone e pronto. Não preciso do gajo para nada. Não preciso de nenhum gajo para nada. Ah, pois é, mas eh pá, olha lá, eu não preciso de nenhum gajo para ter nenhum carro.”
         Espiei-a pelo canto do olho, e o que é que eu posso dizer? Aquilo era um autocarro que passava diante da RTP onde entravam e saíam pessoas com um ar todo finaço, e daí a poucos minutos virava à esquerda para começar a atravessar Chelas, onde os fregueses mudavam logo de figura. Ela tinha entrado na paragem mesmo em frente da Junta de Freguesia da Zona J.  E eu tinha achado que ela era mesmo brega ainda antes de ser obrigada a ouvir aquela conversa. Era o sítio. Um sítio daqueles engendra pessoas daquelas.
         Só me caiu a ficha quando me levantei eu para sair.
Mas que raciocínio tão completamente parvo.
Se calhar as, hum, gajas, pois, se calhar as gajas como a do gajo com o carro nascem de geração espontânea dentro dos centros comerciais com tudo em desconto e pretos em todas as paredes, e os pretos também lá devem ter ido parar de geração espontânea, é?
Como eu sei muito bem e tinha a obrigação de ter pensado logo, há meninos brilhantes em toda a parte. Esses meninos vão todos à escola, que pelo menos no ensino público é de uma qualidade nada despicienda e é obrigatória até ao 12º ano. Os meninos que entraram para a pré docemente pequeninos saem de lá perdidamente adolescentes no esplendor de quem está quase nos vinte mas ainda há de varrer muito a noite até lá. Se depois daquilo tudo ainda quiserem entrar para a Faculdade, toda a gente sabe que as melhores e maiores Faculdades do País são públicas, e cobram propinas abismalmente mais baixas do que as das outras. E, aos estudantes, bem, até os Chutos e Pontapés lhes fazem concertos de graça em dueto com o Camané, com muito prazer. Nada impede ninguém de Chelas de chegar a Magistrado.
         Nos prédios que ficam por cima da Esquadra da zona J, existem de certeza imensos meninos, tão deliciosos e rápidos como os meus naquela idade, com o olhar faiscante a explorar tudo numa grande felicidade.
         Fiquei à espera da minha vez e a pensar na gaja, e no cinema da minha memória a gaja estava a segurar o auricular com uma mão e com a outra mão estava a segurar uma revista com a Catarina Furtado curiosamente nua na capa. Por cima do título a branco a gaja tinha escrevinhado qualquer coisa com uma esferográfica azul.
         Ou seja, a gaja, obviamente, sabia ler e escrever.
         Só faltava também estarem lá uma adição e uma multiplicação para eu me sentir na obrigação moral de acrescentar que aquela gaja também sabia contar.
         Eu ensinei adultos a ler e a escrever durante muitos anos. Lembro-me perfeitamente do País com 27% de analfabetos que acordou com esta ferida aberta no dia a seguir à revolução. Lembro-me das histórias das senhoras com quem eu andava na vindima na aldeia dos meus avós e essas histórias tinham no princípio um leit-motif que era sempre uma cópia exacta do anterior, elas diziam sempre “e depois a quarta classe já não fiz porque havia muita pobreza lá em casa e toda a gente tinha que ir trabalhar.” Era só os meninos ganharem um bocadinho de cabedal que saíam logo da escola e deixavam logo de ser meninos. E a gaja que não quer nenhum gajo por causa de nenhum carro nem sabe de nada disto, foi à escola como toda a gente, e foi com ela, e com toda a geração dela, que o paradigma mudou verdadeiramente no País. Bairro completamente de chungaria, entra uma gaja muito brega, não interessa. Estudou o que toda a gente estuda, e nunca na vida lhe passaria pela cabeça ser-lhe vedada uma educação acessível somente aos meninos ricos.
         Aliás, e pensando bem, é muito bom sabermos que esta gaja está no seu direito de escolher dar com os pés ao gajo pelo telefone, sejam quais forem as suas razões. As senhoras que andavam comigo na vindima nunca tinham sido assim tão livres de escolher como isso.
Clara Pinto Correia autora de Todos os Caminhos, uma edição 4Estações.
www.castordepapel.pt


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