15 – AS TULIPAS DE AMESTERDÃO
Para aproveitar um provável verão de São Martinho, viajei a
Amesterdão e, para nossa surpresa e prazer, a tradição aconteceu: quatro dias
de sol. Será, talvez, a décima vez que visito esta incrível cidade (acho que o adjetivo
está certo), o que não é estranho, pois viajo há seis décadas. Primeiro pela
paixão de conhecer outras cidades e paisagens; segundo, porque criei várias
agências de viagens (Caracas, Montreal, Londres, Portugal, aqui cinco), em
diversas épocas, com as vantagens que por isso conseguia; terceiro, porque
adoro visitar museus e amo (de paixão declarada) flores e plantas, e neste
campo a Holanda é quase imbatível, certo que só quanto às cultivadas.
Flores na Holanda, para o vulgo, é igual a tulipas, mas não
só, também todas as bolbosas que florescem. Importada da Turquia no século xvi, a tulipa (cujo significado original
é turbante) tornou-se uma importante cultura na Holanda e as variedades e cores
multiplicaram-se espantosamente. Bolbos e plantas, não só de tulipas como de
lilases, dálias, íris, jacintos, narcisos e outras bulbosas representam hoje
uma parte importante das exportações do país.
A uns vinte quilómetros de Amesterdão há um parque,
Keukenhof, criado pela cooperativa dos floricultores holandeses, e são muitos,
que garante que este jardim possui todos os espécimes de bolbos que dão flor.
São 32 hectares de cor, um espetáculo inebriador ao qual felizmente já
compareci vários anos, em abril ou maio, data também marcada este ano mas que
por diversas razões transferi para agora. Acresce que para chegar ao tal
parque, que se situa entre Haarlen e Leiden, atravessamos infindáveis campos de
tulipas, das mais diversas cores, em grandes quadrados da mesma cor, um
gigantesco tabuleiro a cores que, visto de avião, lembram as saudosas colchas
de retalhos das nossas avós.
E é também espantoso
que existe uma ‘Bolsa’ de venda internacional de flores, onde nos painéis
saltitam as cotações das rosas e tulipas, camélias e girassóis, em várias cidades
do mundo… em vez do valor das ações do mundo financeiro. Dá-nos a esperança de que
o belo natural da natureza ganha o apreço dos povos. É entusiasmante e faz
lembrar o conselho do budista Li Bai: “Vende um dos teus pães e compra um
lírio.”
Não fomos à busca de
tulipas, pois não era a época, mas de outras belezas: pinturas. O Museu Van
Gogh esteve fechado cinco anos e agora reabriu com mais quadros do pintor e de
outros pintores que o influenciaram, em especial impressionistas, além de mais
documentação. É interessante a coleção de livros do pintor e ver como ele
aproveitou (diria mesmo copiou) tanto a pintura japonesa nos seus quadros. O
extraordinário Rijksmuseum esteve encerrado para obras dez anos e reabriu no
ano passado com noventa salas. Sem dúvida, um sério rival para os Prado, Quai
d’Orsay, Hermitage e MET. E como se não bastasse, há um excelente Museu de Arte
Contemporânea, Stedelijk Museum, instalado num belo e moderno edifício. Todos a
poucos metros uns dos outros.
Estes museus, como os
jardins e os campos de tulipas, os moinhos, e, sem dúvida, os canais e os
edifícios em tijolo que os ladeiam e as barcaças de habitação lá atracadas
atraem centenas de milhares de turistas. Alguns, com a curiosidade adrede do
bairro da luz vermelha e dos cafés onde podem fumar o seu charro
tranquilamente. É, além disso, uma cidade efervescente e
charmosa, com muito que ver, mesmo para quem não visita museus.
Faço fortes reservas
às atividades marítimas das frotas holandesas na época das descobertas, assim
como à sua cruel colonização. Mas admiro o povo holandês pelo seu pragmatismo e
capacidade de trabalho, que conquistou grande parte do seu território ao mar
(creio que sem outro exemplo) e construiu uma sociedade política e socialmente
equilibrada.
Por outro lado,
também penso que os holandeses devem bastante ao nosso querido Marquês de
Pombal por ter expulsado os judeus do nosso país, que, juntando-se aos judeus
expulsos de Bruges e Antuérpia, experts em
lapidação de diamantes, lá se instalaram com o seu know-how e relações, deslocando de Lisboa para Amesterdão a força
do eixo do comércio mundial. Quem sabe se um dia o obelisco da praça Dam não
será substituído pela estátua do nosso cruel estadista, que só atrapalha o
trânsito da Avenida da Liberdade?
A[29211] partir do século xvi os
holandeses ocuparam uma posição de destaque no comércio internacional, em
especial através da ‘Companhia das Índias Orientais’ e da ‘Companhia Holandesa
das Índias Ocidentais’.
Contudo, acho muito
curioso o seu desempenho nas artes em geral. Aprecio muito a pintura flamenga,
em especial pela sua amplitude em focar o homem, os animais, a natureza, com
uma independência menos comum nas belas pinturas espanhola, francesa e
italiana. Estas dependiam do mecenato, quase só pintavam de encomenda, os temas
eram impostos pelos que encomendavam. Mecenato aristocrático e religioso,
portanto os temas eram cenas bíblicas,
retratos de nobres e seus protegidos, propriedades, batalhas. Na Holanda a classe
rica eram os comerciantes que não tinham mentalidade para o mecenato, mesmo que
eventualmente comprassem quadros. Os artistas flamengos pintavam quadros que os
negociantes (galeristas?) lhos vendiam, ou os compravam e negociavam em seu
proveito.
Naquela época,
naquele país, esta é a verdade pouco divulgada, começou o mercado das artes,
com as regras de qualquer mercado, exploradores e explorados, lucros e
prejuízos, roubos e falsificações, leilões, tendo o dinheiro como o único
padrão.
Como é natural, nesta viagem não pude
deixar de me lembrar da minha primeira visita a Amesterdão, nos anos sessenta
do século passado, saindo do Brasil para Frankfurt (Feira do Livro) e que estendi
até à Holanda, de comboio, para apreciar as montanhas e os campos (apesar de
ter passagem aérea desse percurso). Não, não continuaria para a Lisboa, pois
nesses tempos vinha à Europa mas não visitava Portugal, pois prometera a mim
mesmo não o fazer enquanto Salazar estivesse no poder. Verdade que, numa outra
viagem, numa noite de verão, em Tarragona (Espanha), deu-me a louca e decidi
alugar um carro e incitava-me em voz alta: ‘amanhã estou lá!’. Mas não o fiz,
nem sei bem porque não. Mesmo que fosse preso pela PIDE, creio que seria uma
prisão curta. Mas poderia não ser, e eu tinha que tocar o meu negócio
unipessoal no Rio, o meu sustento e o meu sonho. O estar tão perto de Lisboa e
não poder ir abraçar os meus pais e irmãos era o meu Muro (de Berlim) pessoal.
Então, a minha editora brasileira era ainda pequena e eu viajava
com poucos recursos. Na época, quando os meus amigos me perguntavam por quanto
tempo era a viagem, eu respondia invariavelmente: “Três mil dólares” (claro ou
outra quantia). O certo é que a viagem durava consoante o dinheiro, melhor
dito, os dólares no bolso. Não havia cartões VISA, nem tão pouco estrelas
naqueles hotéis em que pernoitava. Conseguia disputar reservas nos Centros de
Turismo dos aeroportos, garantidas por depósito na hora, depois reembolsado. O
imprevisível, as dificuldades, as interrogações, os pequenos triunfos
temperavam essas viagens já tão emocionantes pela concretização de sonhos
alimentados por tanto tempo. Aliás de tantas e tantas cidades que conheci, acho
que foram Paris e Florença as mais mágicas, e logo Amesterdão e Barcelona. Porquê?
Quantas conheci? Não sei, não me interessa, quero apenas saber quantas ainda
conseguirei conhecer ou revisitar. Anos depois, comecei a viajar com tudo
reservado, garantido, planeado, os hotéis com várias estrelas, restaurantes
recomendados, táxis, carros alugados, já os aviões eram a jato, os aeroportos
melhores, e é bom, muito bom, mas não deixo de ter saudades daquelas primeiras
viagens em condições por vezes precárias, outras nem tanto, mas a juventude e o
realizar de sonhos superam todas as
dificuldades.
Voltando à primeira
viagem a Amesterdão. Chegado à Estação Central reservei o hotel no Posto de
Turismo. Isto é, não um hotel mas uma residencial, frente a um canal, não tão
afastado, mas agora nem suspeito onde. Uma vivenda grande, talvez uma dúzia de
quartos, o meu com uma casa de banho que servia ao meu e a um outro. O uso
facultado através de um simples jogo de trincos. Quem usava fechava o trinco da
porta do outro quarto e pronto. Se a sua porta estava com trinco, o jeito era
esperar. O que não obstou que, distraído como sempre fui, não tivesse passado o
trinco e, enquanto me duchava, entrou de rompante a hóspede do outro quarto
que, apesar de eu não ser assim tão horrível, gritou assustada (?) e saiu.
Depois fui pedir-lhe desculpas pelo ocorrido, afinal eram três espanholas e com
elas vi parte do muito que há de interessante para ver naquela cidade. Uma das
espanholas já conhecia bem aquela cidade
e o meu castelhano era na época bom. Além de que eram ‘guapas’ e desinibidas.
Porém, uma noite resolvi ir à Ópera, tanto por ser quase
impossível assistir no Rio, na época, como porque queria conhecer o edifício
por dentro e em função, o Concertgebouw Orkest. É nada menos que uma das casas
de espetáculos com a mais perfeita acústica do mundo, um impressionante e
imponente edifício em estilo renascentista holandês. Ao voltar tarde, isto é,
seriam umas onze horas, talvez menos, pois começara às oito, todas aquelas ruas
desertas (julgo que hoje não estariam, o nível de turistas está muito diferente),
a porta exterior da residencial estava fechada. O dono, um russo ‘branco’
(fugido do comunismo), verificara no quadro das chaves que não havia nenhuma
(sim, eu levara a chave comigo, esquecera de a deixar na receção), portanto pensou
que todos os hóspedes estavam dentro e trancou o porta e foi dormir. Toquei à
campainha, que me pareceu não funcionar (não estava, por causa da pintura do hall) e insisti. Depois utilizei a
mãozinha de ferro que lá é comum, e nada. Desesperei. Onde ficar? Onde me
abrigar do frio daquele outubro de temperatura já tão glacial para um carioca
assumido? Enlouqueci e parti para pontapear a porta e soltar palavrões em português
bem castiço, mas que a minha querida mãe não teria aprovado. Não tardou a que de
uma daquelas janelas rentes ao chão, comuns nas casas holandesas, (são meias
caves, pois o piso está abaixo da rua mas as janelas são amplas e altas), surgisse
uma cabeça de mulher que perguntou: “O que se passa Senhor? A porta está
fechada?” Com alívio, pois afinal aparecia alguém, afirmei: “Está fechada e a
campainha não funciona e eu estou hospedado aqui.” Só então percebi que
estávamos ambos a falar em português. Desci a escadinha, acerquei-me da janela
e entabulei conversa com a patrícia, que era do Porto. Prolongámos a conversa
(é sempre emocionante encontrarmos um patrício no estrangeiro), enquanto o
marido lá de dentro buzinava “quem é?”. Por fim ela prontificou-se a telefonar
para o dono do hotel, afirmou que ele tinha extensão do telefone no quarto, e
foi o que ela fez. A porta abriu-se e afinal eu consegui alcançar a tão
desejada cama. Ao deitar-me, lembrei-me de um trecho de As Minas do Rei Salomão, numa tradução de Eça de Queiroz, que eu
direi mais ser uma recriação, apesar da boa autoria, em que num dos labirintos
o explorador descobre que há muitas moscas e diz (quem? O Eça ou o explorador?)
que “as moscas são como os portugueses, encontram-se em todas as partes do
mundo.”
Tenho andado meio
perdido neste texto, como perdi o meu bom humor e me assustei e irritei nas
ruas de Amesterdão, por causa das bicicletas. Muitas, milhões, uma praga, que
vêm com velocidade de todos os lados, fora dos seus limites, e insultam e quase
atropelam os pobres pedestres, os turistas totós que nas suas vidinhas estão
habituados a passeios apenas para peões. Mas vamos lá, gostei muito desta
viagem, primeiro, como já disse, porque a temperatura estava ótima e o céu
azul. Depois, porque só por si os três museus a que me referi valem qualquer viagem.
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