SEUS CORNOS PARECIAM TRABALHADOS NUM TORNO SUÍÇO de alta precisão,
absolutamente lisos, arqueados e simétricos, muito alvos, contrastando
violentamente com a negritude do seu pelo curto, luzidio e sem falhas. Não era
um touro comum, não, era uma miúra. Na plenitude de sua juventude e vigor, a
sua musculatura desenhava na sua pele brilhante uma escultura viva e a dinâmica
dos movimentos era por todos admirada. Mais do que um animal, era uma peça de
museu. Era realmente um dos melhores exemplares da raça miúra que haviam
pisoteado aqueles pastos. Era o Negus.
Além do mais, tinha tradição. O seu pai matara com uma chifrada certeiro o
maior toureiro de todos os tempos, Manolete. Ele ainda se lembrava bem do pai,
irascível, altaneiro, o mais soberbo animal da lezíria. Sim, ele sabia bem
porque seu pai matara Manolete.
Negus vira dezenas de vezes o filho do guardador provocar o enorme touro,
seu pai, e capeá-lo com arte e audácia. Apesar de ter apenas dezasseis anos, o
garoto era ágil e afoito, prometia como toureiro. Desta forma, seu pai
aprendera as malícias do toureiro, aprendera muito, até conseguir chifrar o
rapaz e, com raiva, apanhá-lo na ponta dos chifres lançando-o em seguida para
bem longe, já inerte. Um touro tem de ser genuíno na sua fúria, na sua corrida,
ao investir, não pode ser ensinado a ser calculista e malicioso. Quem matou
Manolete, o grande ídolo, foi realmente, à distância, um adolescente que então
apodrecia numa humilde campa do cemitério do vilarejo perto.
Pela sua beleza e pureza das características da raça, o dono da lezíria e
da manada decidira reservar o pai de Negus, o mais belo espécimen da raça
miúra, para reprodutor, e nunca o enviar para touradas. Porém, o guardador não
lhe perdoou a morte do filho e, uma vez, fingindo engano na ausência do patrão
separou-o juntamente com outros para uma tourada importante, vingança essa que
determinou a morte do grande toureiro e do magnífico touro. Uma dupla perda,
chorada pelos aficionados da tauromaquia.
Negus gostava de relembrar os tempos que vivera ao lado da mãe e a
omnipresença do pai. Porém, agora estava só na grandeza daquela lezíria verde
puro. Àquela hora da manhã, o pasto estava fresco e inundado de um sol ainda
morno. Disparou numa corrida sem finalidade, somente para gastar a energia que
explodia dentro dele. Parou arfando, suado.
A cavalo, aproximavam-se os campinos, mas também havia estranhos em cavalos
diferentes. Cercabndo-os os campinos juntaram todos os animais e depois
fizeram-nos desfilar, um a um, perante os visitantes. Alguns foram separados e
guiados para um cercado.
Felizmente ele não tinha sido agrupado inicialmente, pois encontrava-se
afastado. Sentiu-se livre e disparou para a beira do rio, célere, fogoso, uma
locomotiva de carne e osso. Foi o seu erro, todos o olharam com admiração, pela
beleza da corrida, e espanto, pois não o tinham visto anteriormente. Os
campinos cavalgaram até ele e cercaram-no, para a seguir o escoltarem para
dentro da cerca onde estavam os outros sete anteriormente escolhidos.
Negus sabia o que tudo isto significava: a Praça de Touros, donde muitos
não voltavam e outros regressavam com profundas feridas que seriam tratadas com
sal grosso, um sofrimento que toda a manada compartilhava. Olhou a lexíria
verde, o céu muito azul e sentiu a brisa gostosa ondulando a erva alta, e
pressentiu que não mais a veria.
No outro dia de manhã, vieram dois grandes camiões conspurcando o ar com a
sua fumaça mal cheirosa. Os touros foram, quatro a quatro, fustigados para
subirem para cada um dos camiões. Estes deram partida e logo alcançaram a
estrada asfaltada enquanto os touros ficaram olhando para fora através das
grades. A velocidade não era muita, contudo ficava difícil equilibrar-se em pé.
O pior era o cheiro horrível, de gasolina, de diesel, de asfalto, uma poeira suja que tornava o ar irrespirável,
muito diferente do da lezíria. O ruído do próprio camião e dos outros carros,
as ruidosas buzinadelas, eram outro desespero, além dos fachos de sol
intermitentes passando pelas grades.
Tudo se tornou ainda mais ruidoso e tumultuoso, os cheiros mais fortes e
piores, ao chegarem à grande cidade. Finalmente, uma grande praça onde se
destacava uma enorme construção circular e vermelha. Os motoristas buzinaram,
os portões escancararam-se e os camiões entraram e pararam por fim. A jaula foi
aberta. Negus relutou em pisar uma prancha comprida para sair, mas foi acuado
com uma vara, desceu e fizeram-no entrar num curro escuro e húmido, onde se
amontoaram todos os oito touros. A sede era imensa, mas havia uma grande tina
com água. Negus bebeu-a sofregamente, apesar do nojo, pois estava morna e com
um sabor horrível.
Passaram horas e horas, e o calor e a sede aumentaram, assim como o
desespero e a raiva. Veio a noite, o calor diminuiu, bem como o barulho. De
manhã, dois homens jogaram algum feno seco e com mau gosto. Mais algumas horas
e aí começaram os mais diversos ruídos, motores, relinchos de cavalos, vozes de
homens, cornetas, um inferno total. Negus continuava na escuridão daquela cela,
sem luz e sem ar, junto com todos os outros touros irritados e se
entrechocando.
No meio do barulho, fez-se um meio silêncio e logo o som estrondoso de
cornetas e patas de cavalos. O cheiro destes vinha em ondas sufocantes, como o
dos homens, odores fortes e estranhos. Subitamente, abrem um portão e um dos
touros é forçado a sair. A gritaria e o som das cornetas é estridente. Negus
ouve os cascos do irmão correndo na arena, assim como os dos cavalos. Depois,
só os dois cavalos e berros de homens e gritos da multidão. A tristeza e a
raiva invadem Negus, que imagina a morte do seu irmão de raça, de mãe, de pai e
de lezíria.
Após algum tempo, o portão abre-se de novo e é ele que é expulso pela força
das varas. Sai numa galopada veloz, seus cascos martelam um chão resvaladiço e
levantam poeira que lhe entra pelas narinas. A luz forte e o barulho imenso
desorientam-no. Estanca bem no centro da arena. A raiva domina-o, espuma de
sede e de ódio, mas continua imóvel. A plateia murmura num assombro de
admiração pela estampa e altanaria do animal. Um forte salva de palmas
homenageia-o, mas ele ignora-a. Como uma locomotiva moderna, corre para onde
surge um vulto humano bramando. Este, surpreendido pela velocidade da corrida
do touro, vira-se e foge veloz, mas não a tempo, os cornos de Negus apanham-no
como uma pá e jogam o corpo longe. O homem ergue-se rápido e corre para se
proteger atrás da paliçada. A gritaria da plateia é imensa. Negus ergue a
cabeça e enfrenta os homens ao longe, desafiando-os. Eram centenas de cabeças,
agitando-se, assobiando, gritando, enfurecendo-o.
O soberbo animal resolve trotar ao longo da paliçada, procurando uma brecha
por onde entrar e avançar sobre aquelas odientas criaturas. Não encontra e, com
surpresa, vê agora, no extremo oposto, um outro homem com uma imensa capa
tremulando. Fecha os olhos e arremete com incrível velocidade na direção do
pano atrás do qual, julga, se esconde o homem. Para sua surpresa, a capa não
oferece resistência e logo os seus cornos chocam com as tábuas da paliçada. A
dor é forte e atordoadora.
Volta-se rápido à procura do homem, contudo este estava lá longe, com a
mesma imensa capa a tremular, a desafia-lo. De novo arremete contra a
tremulante bandeira e o pano passa outra vez sobre a sua cabeça. Estaca,
expelindo pelas narinas Fortes jatos. Está desorientado.
Um outro homem entra em campo e desafia-o com uma capa talvez maior. Corre
para derrubá-lo e marra com força, mas não consegue atingi-lo. Sempre a
desastrada marrada no vazio que a capa esconde. A fúria enlouquece-o, mas não
consegue colher o inimigo.
As cornetas tocam com alarde por bastante tempo. É então que surge na arena
um robusto cavalo que começa a persegui-lo. Negus raspa com força os cascos e,
com fúria, enfrenta o cavalo e chifra-o, mas um estranho acolchoado protege o
flanco do fogoso animal. Com uma vara, o cavaleiro espeta-o e a lança penetra
no dorso do touro, profundamente. A dor é muita e enfurece-o. Negus corre mais
para o cavalo agora distante, avança veloz e, mais uma vez, raivosamente, tenta
chifrar a barriga do cavalo, mas os seus cornos conseguem furar não mais para
além do pano, couro, sabe lá o quê, mas não o próprio cavalo, enquanto outro
ferro o alcança no dorso.
Galopando com aparato, o cavalo afasta-se e sai por uma abertura na paliçada.
Negus corre nessa direção, mas o cavaleiro e a sua cavalgadura já tinham sumido
e não há qualquer espaço aberto.
Furiosamente, o touro galopa resfolgando em volta da paliçada. A gritaria
das bancadas é enorme, atiram flores e chapéus. Como por encanto, entra na
arena um homem alto, com roupa muito brilhante, vem decidido na direção do
sítio onde o touro está especado, uma estátua suja de sangue. Negus sente
espanto, o homem vem a pé, sem capa, decidido, até que parou. Os dois ficam se
enfrentando. O touro parte para cima do homem, passa ao lado e sente um ferro
pontiagudo a ser enfiado no seu cachaço. Tenta arranca-lo com os dentes, és uma
farpa pequena com uma bandeirola, balançando, agora como que pregada por dentro
da sua pele. Apesar do esforço, não consegue arranca-la com os dentes.
O toureiro aguarda tranquilo a sua investida quando o animal corre para
ele. Mais uma vez, este recebe uma farpa no lombo. O sangue borbota abundante,
o animal sente-o bem. O touro não encontra forma de marrar em cheio naquele
homem, que sempre se esgueira das suas investidas, que calcula calmo e
milimetricamente a sua furiosa trajetória para se afastar também
milimetricamente. Pode sentir-lhe o cheiro nauseabundo, mas quando se afasta já
outra farpa é cravada no seu dorso.
O cansaço e a dor dominam o bravo animal que desespera por matar aquele
provocador. O público em volta grita e joga coisas na sua direção, uma confusão
que estala dentro da sua grande cabeça. Contudo, apesar das circunstâncias
adversas, Negus está agora certo de conseguir alcançar o toureiro que, parado,
com uma pequena bandeira, o aguarda. Dispara nessa direção e, quase ao
alcançá-lo, uma espada traiçoeira crava-se-lhe na nuca. Negus sente o frio do
aço a penetrá-lo até bem dentro dele. A dor explode e as suas patas dianteiras
dobram. O sangue sai pela boca aos jorros. Cai pesadamente, mas ainda vê toda a
plateia de pé, batendo palmas e soltando vivas. À suafrente, o algoz, parado,
sereno, vitorioso. Seus olhos cruzam-se e o homem sorri para ele, como que a
agradecer-lhe a coragem e a energia, que agora o abandonam. Assim como a vida.
Os aplausos estrondam, as cornetas troam alto. Após a autorização, o
toureiro corta as orelhas do touro, porém este já não dá conta desta última
humilhação.
Mais tarde, o corpo volumoso e ensanguentado do miúra, amontoado com outros
dois touros, é lançado no estrado de um camião, que sai da praça de touro rumo
ao matadouro.
É o final de uma esplêndida tarde estival. A multidão sai da praça
tumultuosamente e, nas paredes, os cartazes ainda anunciam: GRANDIOSA TOURADA –
TOUROS DE RAÇA MIÚRA
Lá longe, na lezíria verde, uma centena de touros pasta tranquilamente. O
riacho murmura apenas e os pássaros escolhem as árvores para a pernoita. O Sol
é um imenso disco vermelho a sumir terra abaixo, lá ao longe, no horizonte.
O velho guardador enrola o seu cigarrinho e pensa como gostaria de ter
visto a tourada daquele dia, com Negus, que ele tanto admirava. Mas há já
muitos anos que não sai da lezíria que ama e que é o seu ganha-pão, nada mais
lhe interessa desde que o seu filho morreu. Olha demoradamente a manada. Tudo
em ordem.
Começa a escurecer e o coaxar das rãs é uma sinfonia extraordinária. Um
touro dá uma corrida, aproxima-se e encara mansamente o guardador, que o olha
com carinho e diz, como faria a um filho: “Vai, Russo, vai pastar, aproveita
enquanto não te levam”.
TíTULO: O Contador de Estórias GÉNERO: Contos
EDIÇÃO: Mário de Moura
e Ione França FORMATO: 15 x 23 cm
1.ª EDIÇÃO: setembro de 2014 APRESENTAÇÃO: Brochura
ISBN: 978-989-8761-01-9 PVP s/ IVA: 15,00 €
PÁGINAS: 200 – PESO: 330 g PVP c/IVA: 15,90 €