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Os pássaros
Já acordei.
Cheguei ontem à noite ao lado de lá da
minha viagem,
e hoje abri os olhos sem amarras nem
velas.
Está feito.
Já me bateu aquela sensação desagradável
de nem
sequer perceber o que é isto, onde é que
estou, o que é que
se passa a seguir. Já me senti
estarrecida, e depois já deixei
de preferir ficar enfiada na cama. Já
aceitei a realidade.
Já desliguei o despertador. Até já fui
buscar os cereais com
o mínimo de açúcar possível que comprei
ontem à noite
no Aldi gigantesco que fica à beira da estrada
99, e já engoli
em seco porque mesmo assim isto é imenso
açúcar para os
meus hábitos. E já sei que daqui para a
frente vai ser sempre
assim. E pronto. Já não faço mais fitas.
Perante a estranha forma de vida que me
espera agora,
enfio apenas na tijela mais uma colher de
iogurte natural. E, muito naturalmente, aceito estar
pronta.
Olho à minha volta através das janelas
enormes do estábulo
onde no tempo do Kerouac vivia uma mula chamada
Alf, reconheço o bosque, revejo os caminhos
de terra que
rumam à catedral das sequoias milenárias
para lá da encosta,
e já percebi que é mesmo hoje. É a partir
de agora que estou
outra vez completamente sozinha, e eu sei
como é que isto
nos abana porque isto já me aconteceu
antes.
Atravessei o mar, e depois um continente
inteiro.
O oceano que se despenha contra as rochas
lá muito ao
fundo do céu passou a ser o Pacífico.
Na minha primeira noite em Monterey, a Hopkins Marine
Station ofereceu -me o privilégio de
dormir no Centro de Estudos
do Big Sur. Reencontrei o nevoeiro e a verdura
silenciosa,
respirei outra vez o fundo de sal do mar
que chega até aqui,
recomecei a sorrir porque não tenho outro
remédio. E também
porque isto pode ter ficado a doer, mas,
bem vistas as coisas,
tive imensa sorte e acabei por aterrar
num sítio lindo.
O
Jack Kerouac também passou o seu verão de beatnik
cheio de terrores e de copos noturnos numa casinha
de madeira algures pela orla desta mesma floresta. O John
Steinbeck veio cá uma vez e depois nunca mais conseguiu deixar
de cá voltar. O
Henry Miller andou por aqui à procura de Verdadeiras
Comunidades
de Artistas, e foi enquanto cá esteve que aprendeu a ser Pai. Antes de partir,
reli o Cannery Row do
Steinbeck, depois o The Oranges of Hieronymus Bosch do
Miller, depois o Big
Sur
do Kerouac. Assim mesmo, por ordem cronológica do
Grande Mestre que vai inspirando o Grande Discípulo. Livros fabulosos que eu já
conhecia de pequenina. Um grande romantismo,
muito selvagem, exatamente como eu gosto. Mas nada
disto é a minha vida.
Eu
sei que isto não é a minha vida.
Isto
não é a minha cultura.
Claro
que isto não é o meu País.
Ainda
agora aqui cheguei e já tenho saudades de estar no
Maria
da Fonte e fechar os olhos para cantar outra vez uns bons
fados vadios ao lado da guitarra do António. Mas agora já
não posso voltar para a boémia da Rua de São Miguel. É
mesmo verdade. Voltei a emigrar. Fiz tudo o que podia para
conseguir ficar em Alfama, mas até Alfama já
pertencia cada vez mais
aos estrangeiros e menos a nós. Fomos sufocados
por malas de rodinhas sempre a passar
na calçada durante a noite,
e por grupos densos com alguém de altifalante à frente
a debitar pormenores medievais da
nossa História em montes de línguas
diferentes. Até depois da meia -noite apareciam as
pessoas com mapas na mão a perguntar como é
que se chegava aos fados
ou ao castelo, e no fundo disto tudo rolavam
tuk
-tuks,
tuk
-tuks,
tuk
-tuks,
os senhorios punham os inquilinos na rua
para venderem as casas aos escandinavos em
time -sharing,
já andava tudo a saque. Ou estávamos ali para os servir ou não
estávamos ali a fazer nada, e eu como não estava a conseguir fazer nada enchi
-me de coragem e tive sorte. Apesar de já ser velha ainda consegui ir embora
mais uma vez.
E eu sei o que isto é.
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